MOINHO - Clóvis M. Fajardo
Esse é meu relato final sobre os
eventos do moinho de vento da cidade de Holambra no interior do Estado de São
Paulo. Trata-se do maior moinho da América Latina batizado com o nome
de ‘Povos Unidos’. Uma réplica fiel dos moinhos holandeses. O moinho que antes
foi um importante ponto turístico, agora se tornou uma maldição para a cidade
de Holambra e municípios vizinhos. Ninguém mais entrou e subiu outra vez no
mirante, até que eu e Sérgio conseguimos autorização junto à prefeitura. Como jornalistas
da revista “Sobrenatural”, nós viemos para a cidade há quinze dias atrás,
chegamos pela madrugada e nos hospedamos no hotel. Não havia nada de estranho
naquela pacata cidade turística. Sérgio parecia muito feliz com a oportunidade
que tínhamos de ter nossa matéria como capa da revista do mês de agosto. Ele
sabia que eu estava com medo e brincava dizendo “Edson, será que você vai conhecer o rostinho da sua filha, ou essa
será nossa última matéria?”. Sérgio sabia que para mim era muito importante
estar ao lado de minha esposa naquele momento, ela que já tinha desistido de
ter filhos depois que 3 médicos confirmaram que ela era estéril. Deus me
abençoou e eu voltei para minha casa na véspera do parto da minha esposa, e
passei alguns dias junto delas. Infelizmente, hoje rezamos a missa de 7º dia do
falecimento de Sérgio, que morreu no hospital com infecção generalizada por uma
bactéria desconhecida, resultado direto da nossa ousada investigação do moinho
‘Povos Unidos’. Eu havia prometido a minha esposa que nunca mais retornaria
para Holambra, mas um dever para com Sérgio me fez retornar.
Aquele dia foi extremamente
cansativo. Somente depois de uma manhã inteira atrás de relatos e informações sobre
a lenda que estava se tornando em volta do moinho é que fomos para o parque
conhecer de perto o objeto central de nossa matéria. O local parecia
abandonado, a prefeitura não mais aparava a grama do imenso jardim, a portaria
estava coberta de poeira e marcas de vandalismo. O tradicional casal de bonecos
holandeses estava quebrado com fortes marcas pretas de terra. Estavam sem
cabeças e braços. A polícia local se recusava em nos dar mais informações, mas
confirmava o desaparecimento de mais de vinte pessoas em dois meses.
A madrugada já seria bastante
aterrorizante, porque a rua Maurício de Nassau estava sem iluminação e era
cercada de árvores ao lado do lago na Praça Vitória Régia. As nuvens no céu cobriam
a lua, que raras vezes aparecia para projetar sombras no nosso caminho. Para
ajudar, uma garoa começou trazendo com ela um frio repentino. O vento forte
soprava como um lobo uivando. Os galhos se agitavam bravamente e eu pensava
seriamente em deixar para outro dia. Não podíamos ver o moinho, mas eu já podia
imaginá-lo girando, moendo alguém como um saco de grãos. O vento estava
aterrorizante, podia derrubar um homem e nos forçou a andarmos mais rápido.
Demoramos cerca de vinte minutos até o portal onde nos deparamos com o único
ser vivo até o momento. Um cão, um pastor-alemão imenso, latia bravamente nos
intimidando a não continuarmos a jornada. O cão parou de repente assustado e
fugiu logo que ouviu um grito de desespero vindo do moinho. Se havia alguma
coisa lá dentro, aquela seria nossa chance de ouro de descobrir. Paramos na
porta e tive certeza de que não estávamos sozinhos. Um vulto correu silenciosamente para dentro enquanto a
porta permanecia entreaberta e a corrente no chão. Sérgio me olhou
apavorado, fazendo o sinal da cruz. Entramos espremidos na brecha aberta do
pesado portão e logo fomos recebidos pelo desagradável odor fétido de
cadáveres. Tentamos filtrar o cheiro colocando um lenço sobre o nariz e
continuamos a vasculhar o local com o auxílio das lanternas de Led. Enquanto
iluminava o chão, Sérgio encontrava diversos pertences pessoais, provavelmente
das pessoas desaparecidas na cidade. Muitos documentos no chão, camisetas
rasgadas manchadas de sangue e calçados empilhados num canto. Provavelmente
aquele local estava sendo usado como refúgio de um assassino. O criminoso
deveria estar escondendo os corpos naquele moinho. Tivemos certeza disso quando
um raio cruzou a rua iluminando o moinho. Ficamos paralisados ao vermos algumas
pessoas penduradas como carnes num frigorífico. Mas o odor forte não vinha daqueles corpos
pendurados, havia mais alguma coisa morta naquele moinho. O facho de luz da
lanterna de Sérgio passeava pelas paredes do moinho procurando o autor daquela
tenebrosa cena. Por um momento senti algo se aproximar de mim, uma respiração
forte com extremo mau hálito. Sérgio apontou a luz para mim, e o vulto
simplesmente sumiu. Então num instante, quando apontou para o teto, vimos pela
primeira vez uma criatura na parede. Senti um calafrio que percorreu minha espinha. Como uma enorme aranha, com o corpo todo peludo e
olhos brilhantes, a criatura correu pelas paredes como um grande inseto e se
escondeu silenciosamente nas sombras. Tentei voltar lentamente para a porta,
mas por um momento fiquei petrificado, imóvel, com os olhos cravados na imensa sombra que se aproximava de Sérgio. A
criatura nas sombras não abria os olhos, mas ofegava fortemente e rosnava como um grande felino. Para nosso total espanto, ficou
de pé como um humano. Eu não queria saber de mais nada; tentei fugir no mesmo
instante e corri para fora. Sérgio veio logo atrás desorientado e bateu com o
rosto num dos corpos pendurados. Caiu desnorteado deixando rolar sua lanterna que
veio parar perto de mim. A lanterna iluminou um canto isolado onde vi um corpo triturado
na roda do moinho e o sangue escorrendo como o suco de uma fruta esmagada. Fiquei
extremamente horrorizado, mas não tive tempo de reagir. A criatura pulou sobre
as costas de Sérgio como um animal sobre sua presa. “Fuja Edson! Volte agora para sua esposa.” – Sérgio me disse debaixo
das garras da criatura. Eu ia fugir e deixar Sérgio, mas não pude, não quando
ouvi seus gritos de dor latejante, iguais aos que ouvíamos do lado de fora do
moinho. Cada segundo parecia aumentar o ritmo de seus batimentos
cardíacos, que eu podia ouvir mesmo estando longe. Não pude deixá-lo lá.
Contive o fôlego e voltei determinado. Com a
lanterna atingi a cabeça da criatura que saltou pelas paredes sumindo outra vez
nas trevas. Arrastei Sérgio para o lado de fora e o deitei na grama molhada. Mostrou-me
seu abdômen ferido por garras e um sangramento como de quem foi ferido por
facas. Fomos para o hospital onde ele foi medicado e passou a noite em
observação. Procurei a polícia relatando o ocorrido, dizendo que o que feriu
Sérgio no moinho certamente não era humano, apesar do tamanho. O delegado não
me deu muito crédito, mas prometeu retornar na manhã seguinte para averiguar o
caso.
Assim fizemos, e para nossa surpresa a porta do moinho estava
trancada. Lembrei que estava com a chave que nem cheguei a usar. A luz da manhã
ajudou bastante e reviramos o local sem encontrar nada. Simplesmente tudo havia
sumido do local, alguém que estava tentado encobrir o caso. Eu tinha certeza de
que encontraríamos os vestígios, os corpos, o sangue, ou pelo menos a lanterna.
Estávamos passando a corrente quando um pressentimento me fez retornar para
dentro do moinho. Eu precisava provar que não estávamos loucos. O delegado não
entendeu nada, até que ele mesmo viu o corpo no chão e registrou tudo na
ocorrência. Ferido na cabeça, com o abdômen aberto com feridas semelhantes às
de Sérgio, jazia no canto num canto o pastor-alemão. O delegado registrou a
ocorrência, mas não deu crédito a minha versão. Retornei dali para o hospital
na esperança de contar tudo para Sérgio. Mas deixei o hospital com a triste
notícia da morte de Sérgio.
Independente do que seja
aquela criatura que nos atacou, eu voltarei lá e descobrirei o que ocasionou a
morte de Sérgio. Talvez eu nunca mais volte para dizer o que aconteceu, mas
certamente não morrerei com dúvida de que tudo aquilo foi um delírio da minha
mente.